Assim que os créditos finais deste Steve Jobs (UK/EUA, 2015) começaram a rolar, aposto que muita gente no cinema fez exatamente a mesma coisa: ligou seu iPhone. Oras, eu posso muito bem estar escrevendo este texto em um MacBook Pro, quem sabe? Meu filho de seis meses já se encanta com Angry Birds e outros jogos através do irresistível colorido da tela de um iPad. Então sim, Steve Jobs mudou minha vida assim como a de muitos milhões de pessoas ao redor do planeta. Os gadgets que ele criou fazem exatamente o que ele esperava que eles fizessem: eles facilitam as nossas vidas. Eles são esteticamente atraentes. Eles são nossos amigos.
O cativante filme de Danny Boyle (Quem Quer ser um Milionário?), que se desenrola nos bastidores de três lançamentos de produtos-chave durante a carreira do falecido personagem-título, começa com o co-fundador da Apple surtando minutos antes de apresentar o Macintosh em 1984 porque sua equipe não conseguia fazer o computador dizer “olá”. Jobs era minucioso e obsessivo – qualidades (ou defeitos) pelas quais ele ficou famoso – mas ele também estava na perseguição de algo, como hoje sabemos: ele perseguia a ideia da tecnologia servindo como uma constante e confortável companheira.
Tal constatação faz com que o fato dele ser tão displicente com as pessoas ao seu redor, com o mundo real – pessoas que realmente o amavam – seja uma fascinante contradição, uma das muitas que o diretor Boyle, o roteirista Aaron Sorkin (de A Rede Social, 2010) e o astro Michael Fassbender exploram com grande ambição e entusiasmo.
Jobs insistia em microgerenciar os mais minúsculos detalhes de suas apresentações, como certificar-se de que o console NeXT fosse um perfeito cubo negro, à nível milimétrico, no lançamento de sua empresa em 1988, e que depois viria à falência; ou ao ignorar o código de segurança contra incêndios, quando decidiu apagar a iluminação das saídas de emergência do pavilhão onde faria sua apresentação de forma que atingisse uma escuridão dramática para aumentar o impacto na plateia quando revelasse seu produto.
O que ele não conseguia, entretanto, era controlar quem viria até ele momentos antes dele subir ao palco, ou o que tais pessoas diriam, ou o que queriam, ou como eles ousariam invadir seu cérebro formidável para causar confusão quando tudo o que ele queria era manter em ação sua fachada de tranquilidade Zen cuidadosamente planejada. Tais pessoas incluem o co-fundador da Apple e velho amigo Steve Wozniak (interpretado com inteligência por Seth Rogen); o CEO da Apple John Sculley (Jeff Daniels), uma espécie de figura paterna para Jobs e que ganharia fama por ser o homem que viria a demiti-lo; e Chrisann Brennan (Katherine Waterston), a ex-namorada de Jobs e a mãe de sua filha, Lisa, a quem ele rejeitou a paternidade por um longo tempo e também negou qualquer tipo de suporte financeiro.
É realmente fascinante observar a performance do ótimo Michael Fassbender no papel-título. O ator não se parece fisicamente com Jobs, entretanto, ele incorpora seu foco, sua inquietude. Fassbender nunca evitou interpretar personagens problemáticos ou difíceis, como em Shame (2011), 12 Anos de Escravidão (12 Years a Slave, 2013), ou mesmo na franquia dos X-Men, onde interpreta uma versão mais jovem do vilão Magneto. Mas aqui, Fassbender adiciona à sua carreira o desafio de interpretar uma reverenciada personalidade da vida real, que engloba um período de 14 anos de sua vida. Ele nunca se esquiva dos elementos arrogantes ou até mesmo repulsivos do comportamento de Jobs, mas há uma intensidade em sua presença e um ímpeto em seus olhos que o tornam não só convincente como também imponente. Ele não se importa se você gosta dele, e essa ideia por si só é empolgante.
Ao longo de toda a jornada de Jobs, um elemento permanece imutável, entretanto: Joanna Hoffman (Kate Winslet, ótima), seu braço-direito e voz da razão. Seus diálogos com seu chefe são o ponto alto do filme, o que evidencia a química e o enorme talento de sua dupla de protagonistas. O roteiro do especialista em narrativas repletas de diálogos, Aaron Sorkin, é cheio de trocas verbais inspiradas, que utilizam-se bastante dos jargões do universo habitado por Jobs, mas nunca se torna cansativo ou complicado demais para o espectador que não convive com esta realidade mostrada no filme. Dentro do primoroso roteiro de Sorkin, é Seth Rogen quem recita a melhor fala do filme, quando Wozniak finalmente desabafa para Steve em um auditório lotado antes do lançamento do iMac, em 1998: “Você pode ser decente e brilhante ao mesmo tempo. Não é algo binário.” Com sua beleza auto-consciente e insight agudo, esta é uma noção que define o filme inteiro.
A energia da produção é incansável e o elenco corresponde ao ritmo e ao desafio. A narrativa se passa em grande parte do tempo em ambientes fechados, mas sempre há movimento, seja no falatório constante, ou na movimentação nos corredores, escadas e outros espaços, onde fica evidente a vibração e a correria do verborrágico ambiente corporativo. A direção sempre energética de Danny Boyle garante que o filme nunca se torne entediante, mesmo com os citados jargões high-tech permeando a narrativa. Momentos do passado se cruzam com o presente sem nenhum solavanco, e o brilho das luzes e o som das plateias são tão abrangentes que fica a sensação de que estávamos todos lá, à beira do futuro.
Numa nota mais informativa, se você não sabe muito sobre Steve Jobs, este filme não irá ajudá-lo muito no processo. Se você não sabe sobre a garagem na Califórnia, onde tudo começou, ou sobre sua duradoura e atribulada amizade com Steve Wozniak, o potencial para explorar as complexidades da personalidade de Jobs talvez não se manifeste por completo em você. Uma excelente maneira de complementar o que é visto neste Steve Jobs, é assistir ao documentário Steve Jobs: O Homem e a Máquina (Steve Jobs: The Man in the Machine), disponível na Netflix, o qual aborda praticamente o mesmo escopo narrativo do filme, mas de maneira mais informativa. Outro modo é tentar se aventurar pela mediana biografia lançada dois anos antes, Jobs (Joshua Michael Stern, 2013), que apesar do esforço de Ashton Kutcher no papel principal e no enfoque mais pessoal na persona de Steve, não decola e tampouco leva à reflexão.
O roteiro de Sorkin é ousado ao escolher estes três momentos pivotais da carreira de Jobs e estruturá-los em uma “peça” de três atos. Certamente é muito mais preferível do que acompanhar aquela biografia padrão e superficial de sempre, que tenta encapsular eventos em excesso, quase sempre de maneira atabalhoada. Inclusive, é até fácil imaginar este Steve Jobs como uma peça teatral propriamente dita, especialmente se levarmos em conta o caráter verborrágico do protagonista e seu minimalismo visual.
É fácil também comparar o roteiro de Sorkin neste Steve Jobs com seu trabalho em A Rede Social, onde o roteirista discorre sobre o criador do Facebook, Mark Zuckerberg, e que lhe valeu o Oscar de Melhor Roteiro Adaptado em 2011. Tanto Jobs quanto Zuckerberg são gênios visionários que revolucionaram a maneira com que as pessoas se conectam umas com as outras, mesmo que eles sejam um tanto deficientes no que diz respeito à socialização e em suas relações com as pessoas mais próximas. A ironia está presente neste paradoxo, ainda que os homens em questão possam ser cruéis, e suas ações deixarem um gosto amargo na boca.
E o fato de que Sorkin nem sequer tenta redimir estas figuras falhas porém fascinantes, ou mesmo fazer com que o espectador sinta algo por eles, também soa propriamente como uma inovação.
Steve Jobs está disponível no catálogo da Netflix.
Fonte: https://bit.ly/2Eb9XXN